(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 17 de setembro de 2023)
Não pode ser normal que um tribunal de Justiça condene pessoas a penas de prisão extremas por um crime que não existiu. Mas como acontecia nos tempos da pandemia, o que vale no Brasil de hoje é o “novo normal” — e esse tipo de situação não apenas permite, mas considera uma celebração de virtude cívica, julgamentos como o que o Supremo Tribunal Federal (STF) está fazendo neste momento. O STF decidiu, com o apoio do governo, das classes intelectuais e da maior parte da mídia, que a baderna ocorrida em Brasília no dia 8 de janeiro foi um “golpe de Estado”. Não houve golpe de Estado. Golpe exige tanque na rua, paraquedista e um ditador pronto para assumir o governo com o apoio físico da força armada, além de uma porção de outras coisas práticas. Mas, no caso, os tanques de guerra estavam do lado contrário — e como alguém pode dar um golpe de Estado se quem tem 100% da força é o adversário a ser “derrubado? O que houve no dia 8 foi um quebra-quebra. É crime. Mas não é golpe. Os primeiros réus dos processos de Brasília estão sendo condenados a 17 anos de cadeia, punição que a lei só permite para os piores crimes, por terem invadido os prédios dos Três Poderes e destruído patrimônio público. Isso dá um ano meio de prisão, talvez dois ou três, se for considerado que praticaram mais de um tipo de delito. Mas não apenas há punição para um crime de golpe que obviamente não foi cometido; se fosse só isso, a condenação teria de ser no máximo de seis anos e meio. Dentro do “novo normal”, o STF somou duas penas diferentes para a mesma coisa. Além de “golpe”, as pessoas foram condenadas por “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, o que rende outros cinco anos e meio de xadrez. Como é possível praticar esses dois crimes ao mesmo tempo? Ou: alguém consegue dar um golpe sem cometer também “abolição violenta” do Estado de Direito? A coisa vai daí para baixo. Os réus são primários, mas recebem pena máxima, por conta das acumulações de punição. Os juízes e os acusadores falam que não é preciso, realmente, provar que o cidadão A, B ou C de fato fez isto, ou aquilo. Para ser condenado, basta estar presente à cena do crime, ou nem mesmo isso — se estiver em outro lugar, ou só chegar no dia seguinte, mas estiver pensando em coisa errada, já é culpado. É algo que estão chamando de “crime multitudinário”, ou praticado por uma multidão. Envolve até a participação “psicológica” do acusado. O MP diz que é “impossível” provar o que cada um fez; a solução é condenar todo mundo. “Hoje, inicia-se um novo marco na história brasileira”, proclamou o procurador. É isso, então: o Brasil entra numa nova fase.
Drykarretada!