Tenho um amigo que comprou uma chácara e, por isso, anda obcecado pela enxada. Ele só fala nisso! Outro dia nos encontramos e, cerveja vai, cerveja vem, contei a ele uns problemas que estava enfrentando, uma dessas angústias nascidas do disse-me-disse e adubada com as caraminholas da minha cabeça. Ele foi enfático: “Deixa disso. Compra uma enxada e vai carpir um lote”. Para este meu amigo, não há problema no mundo que não se resolva com um pouquinho de disposição. E uma enxada, claro. Ai, eu não me sinto à vontade neste corpo – enxada. Ai, hoje acordei sem inspiração para entregar a crônica – enxada. Ai, sofro com essa polarização política – enxada. Ai, a empresa onde trabalho vai implantar um programa ESG – enxada. Ai, me sinto insignificante diante do Universo – enxada. Ai, como tá caro o Häagen-Dazs – enxada. Ai, o Uber está dois minutos atrasado – enxada. Ai, ando tão estressado que até engordei – enxada. Ai, tem mato demais neste roseiral (hein?) – enxada. Realmente parece não haver problema no mundo de hoje que não possa ser resolvido por uma boa sessão de capinagem (não confundir com carpinejaragem). Não há tuíte ou postagem mimizenta no Facebook ou histeria no Tik Tok capazes de resistir ao efeito curador, quando não purificador, da enxada. Muito me surpreende, pois, que não haja por aí terapeutas quânticos oferecendo a cura para os males da alma municiando as pessoas com uma boa enxada diante de pelo menos um alqueire de ervas daninhas. Fica a dica. A enxada está aí como sinônimo de trabalho manual, isto é, trabalho duro, que faz suar e doer as costas, em contraposição ao trabalho intelectual, cujas dores tendem a ser inventadas – a não ser por uma L.E.R.zinha de vez em quando. A superioridade da enxada como, digamos, terapia e caminho para a felicidade está presente até mesmo na Bíblia. Afinal, já ensina o Eclesiastes (1:18) que quem pensa sofre. Depois de duas horas ouvindo minhas lamúrias e respondendo apenas com uma palavra (enxada), o amigo sugeriu que eu escrevesse uma ode à enxada. “Poesia numa hora dessas?”, pensei em perguntar, mas desisti ao me dar conta de que a melhor resposta seria “por que não?”. Qualquer hora é hora de poesia, ainda mais se for para falar de um objeto tão simples quanto uma enxada. O problema é que... Bom, estou num dia ruim. Angustiado. Pensando em como a morte da bezerra afeta a minha vida. Em dúvida se a melhor rima para “amor” é mesmo “dor”. Estou me esgueirando no horizonte – o que quer que isso signifique. Logo, a solução para o meu dia não é uma ode, e sim a própria enxada.
Panaceia - Na qual eu nunca tinha parado para pensar até ser instigado pelo amigo. Coitada da enxada. Sempre a vi como uma ferramenta menor. No mínimo uma ferramenta menos famosa do que a foice e o martelo. Pessoalmente, minha ligação com a enxada é bastante remota. Eu a usava para pegar minhocas numa vida que parece outra, de tão agrária e simples. E certa vez levei uma bronca da professora de Técnicas Agrícolas por levar a enxada ao ombro. Quase acertei a cabeça de um colega. O que, reconheçamos, daria uma história muito mais legal de ser contada hoje em dia. Uma pesquisa rápida, contudo, mostra que há muito mais na enxada do que a simples sugestão de que nossos problemas intelectuais são frivolidades diante do nobre ofício de carpir um lote. Antes de mais nada, respeite a enxada! Ela acompanha o homem antes mesmo do arado. A enxada é tão importante que os sumérios acreditavam que a ferramenta foi inventada por Enlil. “E quem é esse tal de Enlil?”, pergunta você. Ninguém menos do que o chefe do Conselho de Deuses. Claro que, por estar associada ao trabalho, a enxada é inimiga dos esquerdistas. Veja só o caso do líder trabalhista (se é que você me entende...) César Chávez. Na década de 1970, ele deu uma de Randolfe Rodrigues e recorreu à Suprema Corte da Califórnia para levar a enxada a julgamento. Isso porque, no longo prazo, a ferramenta causava dores nas costas dos agricultores. Resultado: em 1975, a enxada de cabo curto foi banida do estado. E agora chegamos ao fim desta crônica. Estou aqui pensando na melhor forma de arrematar o texto, mas a esta hora não me ocorrem versinhos, aforismos ou referências cômico-políticas. Recorro aos corredores infinitos dessa tão maltratada massa cinzenta. Na busca, porém, acabo errando a porta e entrando no Grande Salão de Mágoas. Estou quase me encolhendo em posição fetal, prestes a sentir pena de mim mesmo, de chorar ao som de Nelson Gonçalves, quando me lembro do amigo e sua panaceia. Enxada.
Drykarretada!